O sol nasce sob o céu de Ponta Porã, tingindo com suavidade o céu com matizes de ouro e rosa, enquanto uma brisa fresca acaricia a sede da fazenda com o aroma de pão recém-assado misturado ao orvalho matinal. Madm é despertado por um sussurro carinhoso de Amada, que o chama com urgência:
— Amor! Amor!
Ainda sonolento, ele se vira na cama rústica, os olhos semicerrados, e murmura com um sorriso sonhador:
— Você não vai acreditar, eu tive um sonho muito top.
— Que sonho? — pergunta ela, inclinando-se com curiosidade, os cabelos caindo sobre o rosto rejuvenescido.
— Sonhei que íamos para uma realidade distinta depois da volta de Yeshua… — Madm pausa, o coração acelerando, e olha para Amada, que o encara com um brilho nos olhos.
— Não foi sonho, e seu rosto já voltou ao normal. — Diz ela, com voz suave e uma mistura de alívio e espanto.
Madm salta da cama, o corpo leve com a energia da juventude restaurada, e corre até um espelho de moldura simples pendurado na parede. Observando-se, ele ri, passando as mãos pelo rosto liso:
— Normal? Claro que não, eu estou muito mais jovem!
Amada se coloca ao lado dele, o reflexo dos dois no espelho mostra a beleza renovada e confessa com um sorriso:
— Viu que não foi um sonho.
Algum tempo depois, sem o resplendor celestial que os marcava no dia anterior, o casal desce as escadas de madeira rangente, com passos sincronizados, para aproveitar um abraço apertado. Madm a envolve com os braços e diz com voz cheia de admiração:
— Estou muito feliz de ver seu rosto jovem e lindo de novo.
Imediatamente, Amada o abraça de volta, o calor do contato aquece seu coração e responde com um riso suave:
— Eu também! Apesar de que eu nunca deixei de gostar das suas rugas.
Eles chegam à sala de refeições, onde uma mesa longa cheira a café, leite, frutas frescas e pão caseiro. Nokram, Luk, Healer, Menslike e Bebeto já estão assentados, conversando animadamente com os trabalhadores da fazenda — Faustão, Duck, Kilba e a governanta. O pequeno Bebeto, com um sorriso radiante, mastiga um pedaço de mamão com os olhos brilhando de entusiasmo, enquanto Nokram explica com paciência:
— Assim, Deus estabeleceu a shabat, uma parada no sétimo dia, pois parou sua criação neste dia.
Madm e Amada desejam um bom dia a todos, sentando-se à mesa, e percebem a atenção dos colaboradores, cujos olhos refletem uma mistura de curiosidade e espanto. Faustão, ajustando-se como pastor evangélico, indaga com um tom desafiador:
— Mas isso é no velho testamento, no novo, Jesus trabalhou no sábado, ou shabat como vocês dizem, e confrontou os religiosos.
Nokram ergue uma sobrancelha, inclinando-se para frente com dedicação:
— Verdade, Yeshua curou na shabat, mas não para quebrar a lei. Ele mostrou que a shabat é para um dia para se praticar a bondade. A lei mosaica, que o Mashiach cumpriu, é universal para todos os fiéis.
Faustão cruza os braços, insistindo:
— Mas a Igreja ensina que o domingo é o dia do Senhor, o novo shabat. Yeshua ressuscitou no domingo, isso mudou tudo!
Healer, com um tom firme, intervém:
— Não, pastor. A Igreja Católica impôs o domingo, mas as escrituras não mudam. A shabat é o sétimo dia, conforme o Criador ordenou em Bereshit, que conhecemos como Gênesis.
Kilba, fascinada, apoia o queixo nas mãos, os olhos claros brilhando com admiração.
— Vocês conhecem tanto… Como podem ter tanta certeza?
Menslike, tentando impressionar a jovem, sorri e acrescenta:
— É porque vivemos isso, Kilba. A Bíblia nos ensina a guardar a shabat como sinal de lealdade ao Altíssimo.
Aparício, encostado na parede com um copo de café, resmunga com desdém:
— Religião é tudo a mesma coisa, papo pra enganar trouxa. Não acredito em nada disso.
Faustão retruca, erguendo a voz:
— Não é engano, Aparício! Jesus trouxe liberdade, e o domingo é nosso dia de culto, baseado na ressurreição!
Nokram, pacientemente, explica novamente:
— Liberdade, sim, mas não para ignorar a lei. A shabat foi dada antes do pecado, antes do primeiro erro na terra e por isso é eterna e pertence ao Eterno. Veja, se pontuarmos os dias — segunda-feira, o segundo dia; terça-feira, o terceiro; quarta-feira, o quarto; quinta-feira, o quinto; sexta-feira, o sexto — o sétimo é o sábado, não o domingo, que é o primeiro. Shabat é um nome que se refere a sábado, que significa cessação, parada.
A governanta, intrigada, pergunta:
— Mas o sétimo dia não é o domingo?
Luk, com um gesto calmo, responde:
— Não, senhora. O domingo vem antes da segunda-feira, logo, é o início da semana. A shabat é sábado, e ser fiel a isso vai além de qualquer religião — é obediência ao Criador.
Healer é mais pontual:
— Na verdade, a shabat dura do pôr do sol da sexta-feira até o pôr do sol do sábado, pois os dias, segundo as escrituras, não começam à meia-noite e sim ao pôr do sol.
Kilba sorri e confessa:
— Eu achava que o dia começava ao amanhecer.
Duck acrescenta:
— Independente do que digam, o dia começa quando o sol nasce!
Kilba pega um pedaço do presunto na mesa, coloca no meio do pão e comenta:
— Vocês também não comem determinados tipos de animais, como o porco, por isso rejeitaram o delicioso presunto neste café da manhã.
— Exatamente. — confirma Nokram, servindo-se de frutas. — A lei de Deus em Vayikra, que vocês conhecem como Levítico, é clara sobre alimentos puros.
Kilba, ainda impressionada, murmura:
— Isso é tão diferente do que ouvi na igreja… Vocês vivem isso de verdade?
Menslike, aproveitando a abertura, sorri para ela:
— Sim, e podemos te ensinar, se quiser. A shabat nos une ao Criador, não nos separa.
Healer, repreendendo com seriedade, corta:
— Cuidado, Kilba, você ouve o que a gente diz e continua a comer o presunto? — Então prossegue: — E Faustão, sua visão evangélica, segue diretrizes humanas, deixando de lado a raiz protestante que buscava a verdade bíblica.
Faustão, ofendido, rebate:
— A Igreja evangélica restaurou a verdade! Jesus nos libertou da lei judaica, e o domingo é prova disso!
Luk, balançando a cabeça, diz:
— Liberdade não é abandonar a lei, mas vivê-la com o coração. A religião pode errar, mas a dedicação ao Altíssimo nunca falha.
Bebeto, empolgado, bate palmas e exclama:
— Shabat é legal! Eu achava que era frescura, mas hoje sei que é símbolo da fidelidade a Deus!
A conversa flui e Kilba retorna a um assunto pautado antes de Madm chegar.
— Então, para vocês, hoje é o segundo dia do ano?
Nokram reitera:
— Sim. Nas escrituras, mais precisamente no livro conhecido como Êxodo, o Criador estabeleceu um calendário. Os meses começam com a lua nova, e cada início é tempo de celebrarmos ao verdadeiro Deus.
Madm, entrando na conversa, indaga:
— Que dia é hoje?
Duck responde:
— Quarta-feira, 27 de março de 1963.
Nokram traduz:
— Ou seja, pelo calendário da Bíblia, 2º dia do primeiro mês do ano.
A governanta, confusa, indaga:
— E vocês queriam saber que dia da semana era ontem para localizar o sétimo dia?
— Isso! — confirma Nokram, sorrindo.
Enquanto o café da manhã prossegue, e todos dialogam sobre diversos assuntos, confrontando seus conceitos religiosos e culturais, Thomaz Muller chega e, à parte, conversa com Aparício na varanda. O capataz sussurra, desconfiado:
— Chefe, estou achando que este casal é golpista.
— Como você chegou a esta conclusão? — Pergunta Thomaz, franzindo a testa.
— O tal do rosto brilhante deles não tem mais hoje. Além disso, estão na mesa falando coisas estranhas. Acho que são magos, praticantes de magia ou algo assim, tentando nos enganar. — Pontua Aparício.
Sem responder, Thomaz se aproxima da cozinha, onde Madm e seus amigos conversam de igual para igual com os funcionários, compartilhando seu entendimento das escrituras. Faustão, intrigado, pergunta:
— Então vocês também não creem que Yeshua é o Deus Filho?
Madm, com calma, responde:
— Só existe um Deus. Yeshua, o Mashiach, é o ungido para ser rei, o filho de Deus, não um deus filho.
Thomaz Muller, interrompendo com indignação, grita:
— Isso é uma heresia! A Santa e Madre Igreja nos ensina desde sempre que Deus é uma trindade — Pai, Filho e Espírito Santo. Como ousam comentar blasfêmias com meus funcionários?
Os colaboradores da fazenda se calam, levantando-se para retornar aos afazeres, exceto Kilba, que permanece com olhos fixos no grupo, em especial, em Menslike. Amada olha para Madm, que não se cala:
— Felizmente, pudemos ver o Mashiach de perto. Não somos nós, aptos para falar sobre o Deus Criador e o Mashiach que para cá nos enviou?
Thomaz se assenta à mesa, a voz firme:
— Talvez, mas vivemos uma fé católica, e vocês são estranhos. Criticar nossa Igreja em minha propriedade é uma ofensa para mim.
— Não quis criticar sua igreja, apenas pontuei as discrepâncias entre os ensinos da Igreja Católica e a verdade das escrituras. — Rebate Madm, mantendo a compostura.
Thomaz, irritado, pergunta:
— Escutem aqui: vocês foram bem recebidos?
— Fomos! — responde Madm.
— Falta algo a vocês? — insiste o fazendeiro.
— Não! — diz Madm, firme.
— Então, custa respeitar minha propriedade e atender meu pedido? — Indaga Thomaz, os olhos duros.
Percebendo a tensão, Amada antecipa com diplomacia:
— Queremos agradecer à hospitalidade e pedir, se algum dos seus colaboradores pode nos levar para a cidade.
Madm, alinhando-se a ela, prossegue:
— Queremos ficar na cidade. Se o senhor resolvesse a questão dos nossos documentos, já ajudaria muito.
Thomaz, após um silêncio, suspira e encerra:
— Vou pedir para um de meus funcionários os levar à cidade e ceder uma de minhas propriedades lá para vocês ficarem por hora. A parte dos documentos vai demorar, mas fiquem tranquilos. Enquanto estiverem em propriedade de Thomaz Muller, ninguém mexerá com vocês!
O grupo se entreolha, aliviado, enquanto o café da manhã se dissipa com um clima de tensão e censura que nos remete a realidade brasileira dos anos 60.