2.1. Em propriedade privada
O sol de Ponta Porã, Mato Grosso, em 1963, queima com uma intensidade quase sagrada, seus raios dourados derramam-se sobre a planície que se estende até a fronteira com o Paraguai, como se o próprio céu estivesse abençoando a terra. Árvores de ipê erguem-se em floridas sentinelas, suas cores vibrantes contrastam com as palmeiras que sussurram ao vento, enquanto o som de mugidos distantes e o zumbido incessante das cigarras criam uma sinfonia rústica. A brisa quente acaricia a pele, carrega o leve aroma de erva-mate das plantações próximas, um perfume que atravessa a linha invisível da fronteira, misturando-se ao cheiro terroso do pasto.
Madm pisca os olhos, ajustando-se à luz crua do dia após o borrão celestial, e percebe que está acompanhado de sua esposa, Amada, seus irmãos Luk e Healer, seu sobrinho Bebeto e seus filhos, Menslike e Nokram. Seus corações ainda palpitam com a transição abrupta, uma mistura de assombro e reverência pulsando em suas veias.
Amada veste uma roupa preta, bela, mas simples, que parece deslocada no interior do Mato Grosso dos anos 60, como um eco de uma elegância celestial que desafia o tempo.
Madm, por sua vez, está envolto em cores vermelho e branco, simples, mas marcantes, com um talit branco e vermelho pendurado no ombro e, na argola de sua calça, um cordão branco trançado com azul — símbolos da necessidade de se guardar os mandamentos conforme ordenado na Torá, a Lei de Deus registrada nas Escrituras.
Nokram, Menslike, Luk, Healer e até o pequeno Bebeto carregam cordões semelhantes, demonstrando a unidade espiritual do grupo.
Bebeto, com seu corpo infantil, mas olhos sábios, exibe roupas douradas; Luk veste um vermelho vivo que reflete sua energia; Healer opta por um leve tom salmão que suaviza sua presença; Menslike ecoa a sobriedade preta de Amada; e Nokram compartilha o vermelho de Luk, unindo a família em uma paleta viva.
As túnicas de linho que lembram a todos a necessidade de guardar os mandamentos de Deus, conforme a Torá e as escrituras, estão carregadas nos ombros de cada um, enquanto os rostos e mãos expostas brilham com um leve resquício da glória celestial, um testemunho silencioso de sua experiência diante da incorrupção e perfeição divina que puderam vivenciar por quatro dias.
Nas mãos de Madm, os dedos firmes seguram o Cristal do Conhecimento, cuja luz pulsa como um coração vivo, e uma bolsa de sementes que carrega o peso de uma promessa — um legado para a nova realidade, a possibilidade da eternidade se espalhar entre os viventes.
Madm volta-se para Amada com o coração acelerado ao contemplar sua beleza rejuvenescida. A pele lisa como mármore, os olhos brilhando como estrelas recém-nascidas e o corpo esguio, mais formoso do que nunca, despertam nele uma onda de amor e gratidão. Ela o encara, com um sorriso que apaga o medo que tenta se infiltrar em seu peito, e murmura, com a voz cheia de amor:
— Você está perfeito, meu amor.
Ele ri, um som que ecoa pelo pasto como uma melodia inesperada, e responde, com voz carregada de emoção:
— Antigamente, eu tinha hiperfotossensibilidade, não conseguiria te olhar, brilhando como está. — Seus olhos varrem o grupo, notando o brilho em cada rosto, e ele corrige, com um tom de assombro: — Não conseguiria contemplar nenhum de vocês, mas o Eterno me curou.
Bebeto, com uma doce curiosidade que reflete sua inocência recuperada, indaga:
— Onde estamos?
Menslike, com um olhar analítico, responde, com a voz firme, mas curiosa:
— Isso parece uma plantação, deve ser uma fazenda.
À distância, o som de sussurros interrompe o momento. Três homens, capatazes da propriedade, debatem entre si, com rostos marcados pelo sol e pela dúvida. Um deles, de cabelos longos e ondulados, com um corpo robusto, aponta na direção do grupo, a voz trêmula:
— Vocês viram aquele clarão?
Outro, mais jovem, sugere com urgência:
— É melhor irmos até lá e vermos o que ocorreu, chefe.
O terceiro, visivelmente assustado, confessa, os olhos arregalados:
— Esse clarão me dá medo!
O homem chamado de chefe, com autoridade em sua postura, repreende:
— Deixa de ser medroso, Faustão, você não confia no seu Deus?
Faustão, endireitando-se com um orgulho hesitante, retruca:
— Eu sou pastor evangélico. Me converti, mas esse clarão pode ser algo do cabuloso.
O chefe ri, debochado:
— Esses crentes são todos medrosos.
O terceiro, chamado Duck, oferece:
— Quer que eu vá à frente?
— Vamos todos juntos! Peguem suas garruchas. Qualquer coisa, a gente dispara. — Ordena, o chefe, com voz cortante como o estalo de um chicote.
O trio avança, as botas pisando firme no solo seco, até avistarem Madm e seu grupo. Seus passos hesitam ao notar os corpos brilhantes, as roupas que parecem saídas de um sonho, e os rostos que emitem uma luz quase insuportável. Duck murmura, perplexo:
— O que é aquilo?
Faustão, com um fio de esperança, indaga:
— Será que são anjos do céu?
Duck, recuando, questiona:
— Não é melhor voltarmos?
Faustão ironiza, tentando disfarçar o nervosismo:
— Achei que o medroso era eu?
— Vamos nos aproximar. — Ordena, o chefe, com voz firme, cortando a tensão. — E se for coisa do demo? — Insiste, Duck.
— Deixa de ser frouxo, Duck! Vamos nos aproximar e ver o que ou quem são! Quem quer que sejam, estão nas terras do nosso chefe, nas terras do grande Thomas Muller! Então, devem sair imediatamente! — Determina o homem.
Faustão, com um tom conciliador, sugere:
— Mas e se forem anjos que vieram nos visitar? Vamos ser simpáticos com eles.
Duck lamenta, protegendo os olhos:
— Os rostos deles brilham, não dá para olhar em sua direção.
— Olhem por cima deles. — Ordena o chefe, tentando manter o controle.
— Meu olho dói ao olhar para eles. — Geme Duck, semicerrando as pálpebras.
No meio do grupo, Amada sussurra, com temor, tingindo sua voz:
— Aqueles homens estão vindo em nossa direção.
Madm olha para ela, o coração apertado, e quando os capatazes se aproximam, murmura com voz carregada de incerteza.
— Estamos perdidos! Onde estamos?
O chefe, olhando para baixo com autoridade, dispara:
— Eu sou Aparício, capataz-chefe desta fazenda, vocês estão em propriedade privada, devem deixar este lugar imediatamente!
Madm, tentando manter a calma, indaga, com voz hesitante:
— Ah, sim! Por onde saímos?
Mas, ao falar, a luz em seu rosto ressoa com intensidade, forçando os capatazes a protegerem os rostos com as mãos, os olhos lacrimejando. Amada, percebendo o desconforto, age rápido. Com um movimento delicado, ela tira um véu de sua bolsa — um tecido leve que não impede sua visão, mas filtra a luz — e o coloca sobre o rosto. Em seguida, pega o talit de Madm, ainda no ombro dele, e o usa como véu protetor, ordenando com firmeza:
— Não podemos fazer mal a estes homens. Tapem seus rostos, pois eles não conseguem nos contemplar.
Faustão, intrigado, pergunta:
— Vocês são anjos de Deus?
Duck, cético, retruca:
— Tem uma mulher entre eles, anjos não têm sexo, pastor de araque.
Com o rosto protegido pelo talit que agora serve como véu, Madm responde com voz calma, mas autoritária:
— Sim! Somos anjos enviados por Deus.
Nokram, corrigindo com suavidade, intervém:
— Mas somos homens como vocês. Estamos em paz, não tenham medo!
Amada, com um tom reconfortante, acrescenta:
— Não somos anjos como vocês imaginam, mas somos enviados de Deus.
Luk reforça, a voz serena:
— Estamos em paz!
Healer, no entanto, adverte, com a voz carregada de convicção:
— Mas saibam que os anjos do céu têm sexo, sim, e vocês estão equivocados sobre os ensinos de vossas religiões.
Nokram o cutuca com o braço e sussurra, tentando apaziguar:
— Calma, nem sabemos qual a cultura ou religião deles. Vamos com calma.
Os capatazes, agora mais curiosos do que assustados, observam o grupo tapando os rostos. Duck sugere, hesitante:
— Não seria melhor levar esses dois para o chefe?
Faustão, empolgado, acrescenta:
— Eles parecem seres de luz! Vai que são extraterrestres ou anjos de Deus? Vai que Deus os enviou para abençoar o chefe Muller?
Após uma breve reflexão, Aparício acolhe a ideia, com a voz suaviza-se:
— Se realmente estão em paz e são como anjos de Deus, nenhum mal lhes ocorrerá. Nos acompanhem, vamos levá-los à sede da fazenda.
O grupo troca olhares, um misto de alívio e tensão, enquanto o desconhecido os chama. Madm aperta a mão de Amada, sentindo o calor de sua presença, e dá o primeiro passo, guiado por uma certeza que brilha tanto quanto a luz que carregam.
2.2. Abrigados
O sol de Ponta Porã começa a se inclinar no horizonte, tingindo o céu com tons de laranja e púrpura. A brisa quente acaricia a varanda da sede da fazenda, trazendo o sussurro de erva-mate e terra seca, enquanto o zumbido das cigarras anuncia a chegada do entardecer.
Após algumas horas de espera, com os rostos ainda cobertos por véus e talits que filtram a luz celestial, Madm, Amada, o pequeno Bebeto, Luk, Healer, Menslike e Nokram sentam-se em cadeiras rústicas. Seus corações batem em compasso ansioso — uma mistura de gratidão, reverência e medo do desconhecido.
À frente deles, Aparício, Duck e Faustão observam com curiosidade desconfiada. O suor brilha nas têmporas dos homens, refletindo o fogo que arde na fornalha da cozinha próxima. Entre eles, uma bela jovem albina se move com graça contida, equilibrando uma bandeja de alumínio. Seus gestos são suaves e seguros — quase coreografados. O tereré que serve exala um frescor de erva e gelo, contrastando com o calor espesso do fim da tarde.
Madm, tomado por um sentimento de reverência e saudade do divino, começa a narrar o que viveram. Sua voz é pausada, cheia de emoção, como quem ainda ouve ecos do céu em cada palavra.
Amada, ao seu lado, complementa com delicadeza. Sua voz é branda, quase maternal, descrevendo a renovação dos corpos e a serenidade que os envolveu. Bebeto, de olhos arregalados, fala dos cânticos que ainda soam dentro dele — lembranças puras de um som que o mundo não conhece.
Luk, Nokram e Menslike revezam lembranças das perseguições e milagres, enquanto Healer fala com firmeza sobre a esperança que os sustenta. O grupo parece respirar em uníssono, unidos por um mesmo propósito.
O silêncio que se segue é denso. Apenas o vento balança as folhas do ipê e o som metálico de um inseto toca o ar. Aparício franze o cenho — o ceticismo pintado em sua expressão. Duck, curioso, inclina-se para frente, e Faustão, o pastor, observa boquiaberto, a Bíblia ainda enfiada no bolso da calça.
Por fim, é ele quem rompe o silêncio, a voz embargada de esperança:
— Então, vocês podem curar qualquer um de nós de qualquer doença?
Madm sorri, o olhar sereno refletindo o último brilho do sol.
— Esta é a promessa de Deus — diz, com convicção mansa. — E cremos que Ele nos honrará.
Duck coça o queixo, hesitante, e aponta para a jovem albina.
— Então… vocês podem curar Kilba?
A moça, até então silenciosa, ergue o olhar, os olhos de um azul quase translúcido queimando em irritação.
— Curar do quê? Eu não sou doente!
A tensão na varanda se dissolve em um breve riso.
Menslike, encantado pela coragem dela, comenta com voz branda:
— Verdade. Não tem do que se curar.
— O albinismo é uma mutação genética — explica, Madm, com calma. — Não sei se é algo que precise de cura.
Kilba cruza os braços, o rosto iluminado pelo pôr do sol:
— É, não preciso de cura.
O riso se espalha entre todos, leve, humano. O som do tereré sendo sorvido mistura-se ao crepitar distante do fogo na cozinha, e por um momento o ar parece menos pesado.
De repente, o ronco grave de uma caminhonete corta o silêncio. A poeira sobe na estrada, e o sol poente se reflete no para-brisa como uma lâmina de luz.
Aparício se levanta bruscamente.
— É o chefe!
O grupo se recolhe, mantendo seus rostos cobertos com os véus.
Amada segura a mão de Madm com firmeza — gesto de coragem e consolo.
A caminhonete Chevrolet Brasil azul estaciona em frente à varanda. A porta se abre com um rangido metálico e, em meio à poeira, surge Thomaz Muller — alto, de ombros largos, o rosto sulcado pelo sol e pelos anos de mando. Tira o chapéu, limpa o suor com o lenço e lança um olhar calculado para o grupo.
Aparício, agitado, vai ao seu encontro.
— Desculpe incomodá-lo, chefe, mas aconteceu algo muito estranho.
— O que foi? — pergunta Thomaz, com voz rouca, arranhada por cigarro e autoridade.
Aparício explica apressado:
— Vimos um clarão no meio do matagal. Quando chegamos lá, encontramos esse pessoal — cinco homens, uma mulher e uma criança. Dizem que são anjos de Deus.
Thomaz estreita os olhos, estudando o grupo.
— Anjos? — A palavra sai com ironia e fascínio misturados.
Nokram, firme, responde:
— Não.
Menslike, sorrindo de leve para Kilba, acrescenta:
— Mas somos enviados de Deus.
Thomaz dá um passo à frente, curioso.
— Enviados? E por que estão com os rostos cobertos? Tirem isso, quero ver quem fala comigo.
Madm hesita. Todos na varanda seguram a respiração.
— Melhor não, senhor — adverte com calma. — Isso pode ferir vossos olhos.
Thomaz ri, desafiando o impossível.
— Se são anjos, não me farão mal, correto?
Menslike, movido pela ousadia e talvez pelo desejo de impressionar Kilba, tira o véu. Por um instante, o ar parece vibrar. A luz que escapa de seu rosto é intensa demais — e Thomaz recua, gritando, cobrindo os olhos com o lenço.
Amada ergue-se, aflita.
— Coloque novamente, rápido!
Menslike obedece. O brilho cede. O silêncio volta a dominar o ar. Thomaz respira fundo, ainda com o rosto vermelho, e diz entre dentes:
— Venham comigo… quero entender o que são.
Eles o seguem até o escritório — uma sala de madeira escura, com cheiro de couro e tabaco. Cabeças de caça pendem nas paredes como troféus de um império privado. O som de um relógio antigo marca o tempo.
Thomaz se senta, tamborilando os dedos na mesa.
— Quem são vocês?
Madm segura as mãos de Amada, olhando-a com ternura.
— Somos de outra realidade. Fomos enviados por Deus para auxiliar esta.
Thomaz solta um riso incrédulo.
— De outra realidade? — pergunta, coçando a barba.
Madm mantém o tom sereno.
— Se o senhor entende que anjos são mensageiros do Altíssimo, então sim. Mas somos humanos como o senhor.
O fazendeiro se inclina, curioso.
— E o que vieram fazer aqui?
Madm inspira fundo, a voz carregada de fervor:
— Existem incontáveis realidades paralelas, coexistindo neste mesmo universo. Em uma delas, o Mashiach efetuou seu julgamento primário e nos escolheu para vir a esta, com uma missão: trazer sua mensagem e proclamar o que vimos.
Thomaz apoia os cotovelos na mesa, pensativo.
— E vieram até mim?
Amada sorri, como quem revela um segredo.
— O Altíssimo o escolheu para nos receber. Há um propósito nisso.
Thomaz sorri, um lampejo de orgulho iluminando seu rosto endurecido.
— E como pretendem salvar nosso mundo, se nem podemos olhar para vocês?
Madm sorri de volta, com humildade.
— Não viemos salvar o mundo. Isso o Mashiach já fez — e fará novamente. Viemos apenas compartilhar o conhecimento e orientar segundo a lei de Deus.
Thomaz balança a cabeça, confuso, mas curioso.
— E como posso ajudar?
Madm hesita, então responde com franqueza:
— Chegamos sem nada. Nossas roupas são as mesmas da viagem. Ainda brilhamos — não sabemos por quanto tempo. Não temos documentos, nem lugar, nem data.
Thomaz solta um riso curto.
— Quer dizer que o rosto de vocês não vai brilhar pra sempre?
Amada, divertida, devolve:
— Não sabemos.
Nokram, reflexivo, explica:
— Assim como Mosheh, após ver a glória de Deus, não manteve o brilho eternamente, creio que o mesmo ocorrerá conosco.
Healer completa, sorrindo:
— Ou talvez dure alguns dias!
O fazendeiro recosta-se na cadeira.
— E se forem apenas ilusionistas? — provoca, meio sério, meio brincando.
Luk, sereno, encara-o.
— Não temos como provar. O senhor terá que crer — ou duvidar.
O silêncio se prolonga até Thomaz se levantar, batendo de leve na mesa.
— Pois bem! Fiquem conosco. Falem-me mais sobre esse Deus e… me abençoem.
Os enviados trocam olhares de alívio. Madm aperta a mão de Amada; Luk respira fundo; Menslike baixa os olhos, pensativo.
Lá fora, o vento muda de direção. O sol se esconde.
E, enquanto a noite cai sobre a fazenda Muller, a nova realidade começa — silenciosa, misteriosa e viva.






2 Comments
É difícil escolher algo aí, por um lado eu escolheria o repouso, mas por outro eu poderia fazer tantas coisas boas para outras pessoas, me sinto inclinado a não repousar e tentar fazer o bem para quem não conhece a justiça… É difícil.
Bom capítulo o Peniel parece ser bem restritivo, será que ele é assim mesmo? KKKK me lembra o Lida de Boku no Hero Academia.
Assim como o capítulo anterior este continua igualmente ótimo essa ideia de como tudo ocorre também esses acontecimentos de Deus chegando e tudo ocorrendo maravilhosamente enquanto os pecadores/errantes sofrem é uma linha entre o bom e o mal.
E ainda mais esse encontro com o Mashiach e com Deus uma coisa inacreditável.